Através da câmara de Carlos Medeiros, a cidade contemporânea e as suas paisagens, revelam-se em cada uma das fotografias deste corpo de trabalho, e fazem chegar até nós obras, traços, sinais que nos remetem para a leitura das várias subjetividades das experiências sensíveis, normalmente inalcançáveis no espaço real a que estamos habituados.
Através de diferentes imagens em diferentes momentos, Medeiros torna-nos cúmplices da observação das diversas mutações pelas quais as paisagens e os seus atores habitantes presentes e ausentes, passam. O artista funciona, assim, como um encenador, que nos revela o espaço entre limites através da sua objetiva.
Nestes registos fotográficos encontra-se também evidente, por seu lado, uma determinada mediação das dicotomias, ilustrando o proposto pelo Géografo Augustin Berque quando afirma que “a paisagem não reside somente no objeto, nem somente no sujeito, mas na interação complexa entre os dois termos. Esta relação, que coloca em jogo diversas escalas de tempo e espaço, implica tanto a instituição mental da realidade quanto a constituição material das coisas. (BERQUE, 1998)”.
É, pois, com base neste princípio, que as imagens aqui patentes vão fluir de uma forma que nos vai dando a experimentar, à passagem, a expetativa de que algo poderá acontecer ou que está para acontecer nestes pequenos quadrados de um sitio/ não sitio.
É ainda a partir da paisagem, que está como sempre esteve, ligada a uma representação, idealizada ou não, de ideias pré concebidas acerca da busca incessante da captação de um instantâneo que registe as mudanças que têm vindo a ocorrer nesta vida de “ não ter tempo” que a arte procura revelar a transitoriedade do contemporâneo nas suas variadas vertentes expressas em atos, ritos, palavras ou imagens. Objetos da vida material, uma materialidade de espaços construídos, revelam, em si mesmos, uma subjetividade e uma sensíblidade que é partilhada entre o artista e o observador, remetendo-os, ambos, para um culto de significações culturais acerca do real, em que o primeiro surge a questionar o segundo sobre o tempo. Um tempo que não existe em lugar nenhum, mas que, ainda assim, está patente na imaterialidade das fotos ou na fixação das imagens.
Walter Benjamim disse, um dia, algo como isto no momento em que Daguerre conseguiu fixar as imagens: “Os técnicos substituíram os pintores.”. E que técnicos são estes? Ou melhor, que técnico é este que nos propõe olhar para estas representações do real carregadas de negro, carregadas de tudo e de nada, carregadas de histórias ou sem nenhuma história, apenas registos de um simples técnico. É o técnico do olhar ou será o técnico da mente? De nos fazer pensar e de nos obrigar a questionar, de nos obrigar a olhar uma, duas e muitas vezes para uma tradução prática de uma técnica? No fundo, estes técnicos não farão apenas e sempre uma única coisa, captar a luz? Sim. Porém, essa luz captada não vem sozinha, ela carrega consigo uma interpretação reinterpretada de emoçoes, histórias, arquiteturas, paisagens.
Termino citando novamente Berque, acudindo-me da sua ideia de Trajection:
A ideia expressa por trans (tra) é a de um limite, de passar para o outro lado: o limite, no caso, é aquele que o dualismo moderno institui entre o mundo interior subjectivo e o mundo exterior objectivo. Ora, essa dictomia é radicalmente incapaz de explicar a realidade do ecúmeno, logo, da paisagem. Com efeito, como mostrou a fenomenologia ( principalmente Watsuji) e a antropologia pré – histórica ( principalmente Leroi – Gourhan), os ambientes humanos são, por assim dizer, uma extensão do nosso próprio corpo humano (...) O símbolo, inversamente, anula materialmente as distâncias.A trajection conjuga assim, transferência material e metáfora imaterial. (BERQUE, 1998).
António Pedro Mendes
Lisboa, 14 de Julho de 2014