segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Ama como a estrada começa, Mário? É orientação
que se dê a uma criança, tanto mais
se a criança se encontrar transviada
ou caminhar errante querendo seguir em frente?
Que a estrada não começa, nós é que nela
poderíamos ter um dia começado. Em boa verdade,
e falando agora a título pessoal, sem pretender
generalizar, a estrada é um lugar em andamento
que já passou por mim, parecido
com a minha infância e com versos de Ruy Belo
onde os pássaros pousam e os cães vêm beber.
A estátua do Condottieri, lembras-te? Bronze
transformado em movimento e movimento
em iminência. E nem sequer fiquei a meio
de uma ligação qualquer com a minha vida,
que teima em fazer-me sofrer, embora a paisagem
seja apreciável e as gentes se mostrem
acolhedoras, mas não ao ponto de amar
se converter numa hipótese plausível.
Em vez de escreveres versos destes, mortalmente
correctos, devias ensinar as crianças a amar correctamente.
Ensina-me a mim, que pouco percebo de amar
e aos livros cheguei cedo demais
para cumprir o teu comando. Olham-me de viés,
com desconfiança e vergonha, e escondem-se
debaixo do lençol com que tapávamos os sofás
e o espelho de umas férias para as outras.
Envaidecia-me então o aparo dourado
que me corrigia o que estava mal. Rasurava até
os cadernos romperem como vulgar papel.
E depois foi tudo a correr e tanto
que já não me lembro do princípio e às vezes
parece que até já estamos depois do fim,
quando os espectadores se retiram com as mãos aquecidas
pelos aplausos e vão beber um copo e tudo
se desfaz. Nunca soube como deter o tempo,
incapaz de o transformar numa imagem parada
ou numa vertigem decisiva que me arrastasse
para um vazio diferente deste.
Nunca soube agarrar-me ao tempo, morto
como aquele pistoleiro do filme de aventuras
que a criança não se cansa de ver
apesar de a seguir não conseguir dormir,
uma personagem barata que é atingida em pleno
coração, em pleno saloon, o tiro a ecoar
em gargalhadas e de novo em piano. Falas-me
na tua estrada e encontro apenas um rosário
de recordações alheias. Ao reler o teu poema,
ou te julgo incauto ou concluo que já sabias
e que o imperativo se fez de reserva na passagem
das veias à cabeça. Literatura?
Certo, Mário, é que me levaste ao engano.
E não sei se alguma vez poderei vir a perdoar-te.


José Ricardo Nunes

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